Nome: Julio Adler
Nascimento: 10 de agosto de 1967
Natural do Rio de Janeiro – nascido e criado na zona sul – parte no Largo do Machado e, nos últimos 30 anos, na Gávea.
Ao longo das próximas linhas (bota linha nisso!) o eventual leitor do Surfe Pensado (que tem seu arquivo inicial no site www.itacoatiara.com) terá a chance de conhecer um pouco da história e das opiniões de uma personalidade marcante no meio do surfe brasileiro. Surfista inveterado, consumidor compulsivo de qualquer tipo de material que diga respeito ao surfe, Julio Adler é jornalista autodidata, foi campeão do circuito carioca de surfe profissional em 1990, e não está na ‘grande’ imprensa especializada em surfe no Brasil. Suas críticas e opiniões sobre essa imprensa o afastam da própria. Apesar disso, Julio escreve há quase 10 anos na revista Surf Portugal e seu nome pode ser visto nos créditos de edição de alguns dos principais vídeos de surfe feitos no Brasil, como nos recentes ‘Fábio Fabuloso’ e ‘Samba Trance & Rock’n Roll’. A entrevista que você está prestes a ler nunca seria publicada em revistas como a Alma Surf, a Hard Core ou a Fluir. Leia e fique sabendo o por quê! (essa entrevista foi feita em 28 de março de 2005, para uma publicação que não chegou a existir)
Como você analisa as fases do seu envolvimento com o surfe, ao longo da sua vida?
A primeira fase, em idade bem tenra, com os namorados das minhas irmãs mais velhas, com algum deslumbre, mas sem nenhum envolvimento. Muito mais tarde, minha irmã começou a namorar um outro cara, que me deu uma prancha usada, uma Mudinho 7’2” vermelha. Só que a prancha tava com a rabeta toda ferrada e eu não me empolgava de surfar com a prancha velha porque tinha vergonha. Essa primeira fase foi no final dos anos 70, por volta de 1978, 1977.
Depois, já no início dos anos 80, esse cunhado me deu outra prancha. Nessa época eu só queria saber de futebol. Sou flamenguista, treinava na escolinha do Flamengo e tinha o sonho de jogar bola profissionalmente. Eu não gostava de praia, só gostava de piscina. Esse cunhado era surfistão, ia à praia todo dia pegar onda de manhã cedo e tal. Mas eu não me interessava pelo surfe. Nessa época, eu jogava bola todo dia de tarde na praia, ficava procurando pelada pra jogar, ali no Leblon. Aí, num dia de ressaca, fiquei lá vendo o mar, junto com meu primo, e um cara quebrou a prancha no meio. A metade do bico dessa prancha veio pra gente. O cara era nosso conhecido e acabou nos dando a metade da prancha. Vimos uns caras fazendo Skimboard, que era jogar a prancha na beira pra ficar em pé, começamos a tentar fazer aquilo e gostamos pra caramba. Então, começamos a praticar o ‘surfinho’, que era como a gente chamava o Skimboard. Aquilo ficou sério, a gente se envolveu mesmo com a parada. Eu ficava esperando uma ressaca pra fazer o surfinho. E aquelas duas pranchas continuavam guardadas aqui em casa. Num belo dia, resolvemos pegar as pranchas pra surfar de dentro d’água, ao invés de ficarmos na areia. Comecei ali a pegar onda.
A segunda etapa do meu envolvimento com o surfe veio através do Zulu, um cara que hoje virou modelo, mas que naquela época era só um surfista promissor; e do Parrá. Eram dois caras que eram melhores amigos. Era a história mais velha do surfe: dois amigos inseparáveis, que amam pegar onda acima de tudo e só querem saber de pegar onda, queimar fumo e comer mulher. Eles foram a minha segunda maior influência. A primeira foi o namorado e, hoje, marido da minha irmã, o Ronald, e a segunda, o Parrá e o Zulu. Eles tinham uma Brasília ferrada e eu ia todo dia pro Quebra-Mar com eles. Nessa segunda fase eu virei surfista mesmo, comecei a matar aula e já tinha a minha prancha. Os caras queriam me ver cada vez mais envolvido com o surfe, porque eu era mais um parceiro para eles, apesar de ser muito mais novo. Na época, os caras com 19 e eu com 15, era uma diferença gigantesca. Eu passei a pegar onda no Quebra-Mar o ano inteiro. Eu era o único moleque que tinha no pico naquela época. Raramente tinha problema de violência lá. O jiu-jitsu ainda não tinha chegado. Nem essa política primitiva que impuseram no pico hoje em dia.
Mas já havia o localismo, no Quebra-Mar, nessa época?
Sempre teve. Assim como em qualquer lugar. Acho que o localismo é um mal necessário. Agora, não precisa chegar às vias de fato. Tem que impor respeito de outra forma, não precisa ser na porrada. Continuando, nessa época, eu tinha um amigo surfista, que morava no meu prédio, e que tinha um surfe limitado. Pra me manter sempre no nível dele, o cara me puxava pra baixo. Então, eu demorei muito tempo pra perceber que tinha algum talento pra pegar onda. Os caras da minha geração já competiam, tinham patrocínio... Eu achava que era um cara como outro qualquer. Aí entra a terceira fase.
Outro amigo, que morava na Gávea, me deu uma carona, a gente passou por um campeonato e ele perguntou por que eu não corria campeonatos. Perguntei o que iria fazer num campeonato, disse que os caras pegavam muito mais do que eu. Ele falou que não, que se eu entrasse num campeonato poderia me dar bem. Eu tinha uns 16, 17 anos. A categoria Amador ainda estava aparecendo. Tinha Júnior e Mirim de vez em quando aqui no Rio. Esse cara tinha uma marca de capas de prancha, chamada ‘Avant Garde’, era o Alexandre Pacheco, e ele falou que no próximo campeonato iria pagar a minha inscrição. Entrei num campeonato da ASBT (Associação de Surfe da Barra da Tijuca) e fiquei em quinto, indo pra semifinal. Fiquei feliz pra caramba. Foi uma barreira rompida, eu não levava fé que era capaz de passar uma bateria. E o campeonato foi todo na espuma porque o mar tava grande. Aí comecei a acreditar que tinha algum jeito pra pegar onda. Continuei pegando no Quebra-Mar até um belo dia que saiu uma porrada mais feia. Fiquei muito chocado com o cara sendo apagado na minha frente. Parei de andar por lá e isso me tirou um pouco de referência. Deixei de ser surfista do Quebra-Mar, o que era o meu estigma naquela época. Pra qualquer lugar que ia, era identificado como surfista do Quebra-Mar. Foi a maior merda. O Quebra-Mar estava muito violento e eu era hostilizado em todo lugar que ia competir porque era tido como local do Quebra-Mar. Ninguém entendia que eu já tinha saído de lá e que não estava de acordo com aquela porra. Passei a pegar onda em tudo quanto era praia. Aí pintou um patrocínio de prancha, as coisas foram melhorando e chegou uma hora em que passei a encarar as competições de maneira mais séria. Encarei o surfe como amador de forma bastante séria, sem nunca ter tido um patrocínio muito forte, porque acho que não tinha um perfil adequado para a época. Fiquei tentando ir para o Mundial Amador, que seria no Japão, em 1990. Tentei até o último campeonato, mas não deu. Em 88 ou 89, fiz uma final de um campeonato brasileiro amador e me empolguei um pouco, achando que poderia ir para o mundial. Mas não consegui me classificar e virei profissional, em 1990.
{campeão carioca profissional em 1990} Aí tudo conjugou para eu ser campeão carioca profissional nesse ano. Foi totalmente sem querer, não foi nada planejado. A primeira etapa eu não corri porque tinha pego pneumonia; na segunda, fui vice campeão; na terceira, fiquei em quinto; e aí, na última, o Vitinho (Ribas) e o Pedro Muller não correram. Ambos tinham um 1o e uma 3a colocação, ou seja, eles seriam os francos favoritos ao título; mas aí o título ficou entre eu, Léo Chinês, Rodolfo Lima, Eraldo (Gueiros), acho que eram só esses. Quando chegou as quartas de final, eu já tinha passado pela triagem inteira, pois eu corria desde a triagem, quando falaram que se eu passasse mais uma bateria seria o campeão carioca. Aí eu caí com o Rodolfo, que era o meu patrocinador naquela época. Sempre tive uma atitude quanto à competição, porque acho que competição é uma outra parada. Então, caí com o Rodolfo nesse dia e para mim eu não estava caindo contra o cara que me patrocinava, eu estava caindo contra um adversário, e agi da mesma forma como agia com todos os outros, ou seja, eu ignorei o cara. Eu tinha uma atitude agressiva, não olhava na cara do malandro. Se olhasse era para intimidar. Acho que ele estava esperando que eu fosse ser generoso com ele. Não sei. Chegou dentro d’água, botei pra quebrar e ganhei dele. Depois, ele me demitiu sem nem falar comigo. Não fiz nada de mais, só entrei na água pra ganhar. Não lembro se teve alguma disputa e isso pouco importa, o que interessa é que eu venci. Ele ficou muito puto na época. Tanto é que eu tinha acabado de me tornar profissional, ganhei o título carioca, queria negociar o suposto contrato, que não havia, e pedi 100 dólares a ele, por mês, e ele recusou. Recusou no recalque, pois não fazia diferença pra ele. Ele patrocinava a mim e ao Alemão (Claudio Walter – Shaper Hennek da Wet Works) e dava uma miséria para cada um.
{Mudança de rumo} Mas, na semana anterior ao título, eu tinha conversado com a minha mãe, dizendo que ia parar de competir, que ia voltar a estudar, a trabalhar, que o surfe não dava pra mim. O título aconteceu e alimentou a ilusão por mais algum tempo. Tem essa fase que você é inflado pela ilusão e sai voando por aí. Ganhei uma etapa do circuito brasileiro, em 92, que também era WQS, o Sea Way Classic. Em 93, fiz a final do Nescau, na Joaquina (SC), com Barton Linch, Jojó (de Olivença) e Pedro Muller. No meio do caminho, ganhei de caras que admirava, como Luke Egan e Matt Hoy. De volta a 92, à vitória do Sea Way, caí com os caras que me tiraram do mundial amador de 1990: Tadeu (Pereira), Vitinho e Joca Júnior. Eu tinha um problema mais sério com o Joca Júnior porque achava ele um enganador do caralho. Ficava chocado como as revistas alimentavam essa imagem do Joca de grande surfista. O cara sempre surfou de fundo, dava uns aereozinhos pulando. Na área dele mesmo tinham dois ou três surfistas muito melhores do que ele em aéreo, o Toni Vaz e o Brainer Brito, e, no entanto... E aí me vinguei um pouquinho dessa época de amador. Já éramos profissionais, Vitinho tava se recuperando de uma contusão, ele tinha quebrado o pé na Califórnia, ficado um tempo fora de combate e tava voltando naquele campeonato.
Depois, veio a fase de declínio. Em 95, 96 parei de ter resultados e, em 97, resolvi parar de competir porque não agüentava mais perder. {nesse momento Julio coloca um som; um disco de bossa nova, do Roberto Menescal, de 1966, chamado Surf Board, que, por sinal, tem uma música do Tom Jobim, famosa, chamada Wave... talvez a verdadeira surf music genuinamente brasileira...} Fiquei meio sem saber o que ia acontecer com a minha vida. Eu queria muito continuar trabalhando com surfe para eternizar essa ilusão que a gente tem, de se manter envolvido, ganhando roupa, vendo os filmes, as revistas, pegando onda, viajando... Mas não encontrei o meu espaço. Em 98, fui trabalhar com Bocão e Antônio Ricardo, na Unigraf, para aprender a mexer com vídeo e televisão, que era o que eu gostava. Já tinha feito os (vídeos) Cambitos, com o Pepê, o Bomba e o Marcelus, mas queria fazer alguma coisa com o Bocão e o Antônio. Eu admirava muito eles, os caras estavam há 200 anos na televisão fazendo uma cobertura que eu achava de primeira, porque não havia outra pra comparar. Até hoje ainda considero uma cobertura muito boa. Fui trabalhar com eles pra iniciar uma divisão de vídeos dentro do arquivo dos caras. Acabei sendo sugado pelo esquema deles para fazer outras coisas. Fiquei dois anos por lá, ganhando muito mal, trabalhando muito, mas aprendi um bocado de coisas, principalmente com o Bocão. O Antônio não tem nada pra ensinar porque ele divide muito pouco com os outros. Mas o Bocão, apesar da chatice dele, acaba empurrando algumas coisas na nossa cabeça, e me ajudou um bocado.
Em 2000, saí fora e logo no início do ano veio um convite, indicado pelo (Roberto) Perdigão, para fazer o roteiro do programa Super Surf, um projeto da Abril, que estava começando e que ia ser veiculado na Bandeirantes. Uma produtora de São Paulo me convidou, eu estava sem fazer nada, pedi uma mixaria, que os caras aceitaram na hora. Eles estavam esperando que eu fosse pedir o dobro, fui saber disso depois. Durante oito meses ia toda semana pra São Paulo. Foi muito legal, conheci um monte de gente bacana, fiz bons amigos, que mantenho até hoje. A pessoa que era encarregada da Abril Eventos, na época o Patrick, fez de tudo para afundar o projeto, principalmente o programa, e conseguiu. No ano seguinte o projeto do programa de televisão saiu das mãos da Pródigo Filmes e foi parar na mão da MTV, que produziu o programa durante um ano. Ficou tão ruim que os caras passaram para a KN. A KN é uma produtora que sucateia o mercado desde sempre. Uma produtora que prima pelo preço, ou seja, eles fazem tão barato que ninguém consegue competir com eles. Eles sucateiam o próprio mercado de trabalho. Eles foderam com a vida de várias outras pequenas produtoras que gostariam de estar trabalhando no mercado, mas que graças a eles tiveram que procurar outra coisa para fazer. A KN continua até hoje com o Super Surf, fazendo uma merda de programa, que eu acho que piora a cada ano. Tem zero de jornalismo e zero de conhecimento. E a Abril se acostumou a pagar pouco. No início, o orçamento anual da Abril era de aproximadamente um milhão de reais para fazer o programa e hoje em dia acho que aproxima-se de um terço disso. Graças à KN, que faz as coisas a preço de banana, sem se incomodar com o dia de amanhã.
Depois do Super Surf e desse capítulo enorme em que resolvi afrontar a KN, vem o Fábio Fabuloso, que foi a parada mais legal que a gente fez nas nossas vidas.
Ainda, antes de ir para o Super Surf, fiz o “Trocando as Bordas”, com o Pepê, que considero um dos trabalhos mais primorosos que já foram feitos em vídeo, seja qual for a nacionalidade. Me orgulho muito desse trabalho que, aliás, mais uma vez, é mérito quase total do Pepê.
Depois, tive a oportunidade de fazer o Fábio Fabuloso, novamente mérito do Pepê. Tudo saiu da cabecinha doente dele, inclusive o roteiro. Ele fez a parada toda. A gente serviu apenas como instrumento para as idéias dele.
-Quem é o Pepê?
O Pepê é quem escreveu o Brasil no mundial de surfe amador. Ele foi o primeiro brasileiro a participar da competição, em 1984, na Califórnia. Ele ficou em sexto, fazendo a grande final, num ano que tinha o Damien Hardman, o Brad Gerlach e uma turma muito boa.
Você também escreveu matérias de viagens para a revista Fluir. Onde isso se encaixa nessa história?
Numa época, eu andava um bocado com o... Deixa isso pra lá... O importante é que eu sempre gostei muito de ler. Quem lê muito acaba tendo vontade de escrever. Em determinado momento, achei que era possível conciliar a vida de surfista profissional com o bom relacionamento que eu tinha com determinados fotógrafos e ficar viajando. Foi assim com Pelicano Point, República Dominicana, El Salvador, África do Sul... Eu queria fazer isso da vida. Achava que aquele seria o próximo passo. Não sei por que, mas não sou uma pessoa bem vinda nas revistas. Tinha coluna na Inside, na Fluir; já escrevi um bocado para a Hard Core e para todas elas. Mas nunca mais ninguém me convidou para escrever, todos sempre com a desculpa de que sou caro. Ninguém me pergunta quanto custa, mas todo mundo acha que sou caro. Apesar de ser caro, ninguém se incomoda em pagar ao Bocão e ao Fred o que eles pedem. Foi um bom tempo.
Qual análise você faz sobre a imprensa especializada no Brasil – e como você relaciona essa imprensa com o que é feito nessa área no resto do mundo?
A imprensa que trata do surfe aqui no Brasil é infantil. Eles têm a ilusão de que fazem revista pra todo mundo, pro cara do interior de Minas, de Goiás e sei lá mais de onde. Eles não têm o interesse em falar diretamente para o surfista, numa conversa mais cara a cara. Preferem ser abrangentes e assim fogem do princípio da imprensa especializada. A imprensa especializada em surfe no Brasil é vaga, não se aprofunda em nada. Nela não existe análise, crítica e nem autocrítica, algo que é um perigo. Eles só têm a meta de vender tantas revistas por mês e acabou. Hoje em dia, a imprensa especializada impressa vive de favor; as matérias de viagens, que eles consideram o grande charme da revista são sempre pagas por algum patrocinador, sempre “armadas”, mas sempre com vários benefícios embutidos. A revista não investe absolutamente nada na cobertura do surfe. Não manda um correspondente cobrir um campeonato porque considera o campeonato irrelevante. Traduz press releases da pior forma possível, trabalho feito por pessoas que não têm quase nenhuma vivência como observadores de competições.
A imprensa especializada brasileira é sempre didática, tendo que explicar a cada vírgula por que está tendo que botar a vírgula, o ponto de interrogação. É aquele padrão Folha de São Paulo de jornalismo para deficientes mentais. Eles tratam o leitor como um imbecil. Aí aparece uma revista como a Alma Surf, que pretensiosamente parece tratar o surfe com romantismo, o que é uma grande mentira. Na verdade eles ficam enchendo lingüiça, com textos às vezes gigantescos que não dizem nada. Um trabalho de pesquisa extensivo, que é mera pesquisa, não tem nenhum conhecimento.
E na Austrália e nos EUA, quais são os grandes meios de comunicação especializados em surfe?
As três grandes revistas, hoje, são a Surfer, a Surfing e a Transworld Surf. Essas são, inegavelmente, referências para surfistas de qualquer idade. A Surfing está ficando cada vez mais imatura, tentando rejuvenescer, regredindo em idade mental para atingir um público que a Transworld Surf começou a arrecadar, quando apareceu, há alguns anos atrás. E mesmo a Transworld já está se declarando mais madura, procurando pautas mais pertinentes e melhorando um bocado, apesar de ser uma revista muito auto referente. Os dois irmãos que fazem a revista estão sempre falando deles mesmos e eu estou preocupado com o que acontece com os outros, com o objeto e o tema da revista. Não estou dizendo que é sempre preciso se aprofundar, às vezes você pode fazer uma revista inteira sem ser pentelho num tema específico. A Transworld mesmo uma vez trouxe o Slater na capa, quando ele perdeu o título para o Andy Irons, dizendo “defeated”, ou seja, “derrotado”, com uma entrevista do caralho com ele. Eles fazem boas entrevistas e tem uma parte do editorial que é uma recuperação da história, sempre contando um pedacinho da história que eu acho muito bom numa revista. A Surfer, na minha opinião, continua sendo a grande referência em revista. Não são todas as edições, mas eles acertam mais do que erram. Eles parecem levar um pouco mais a sério o negócio. Levam a sério o surfe, mas não se levam a sério. Isso é muito importante. Alguns jornalistas se levam tão a sério que chega a ser ridículo. Falando desse negócio de se levar a sério, a Australia’s Surfing Life é o grande exemplo de bom humor. Ela é um derivado da Tracks, outro grande veículo, e ambas tratam o surfe com uma proximidade que só o australiano tem. É uma proximidade absurda do seu objeto, do seu tema. Tem um repórter brilhante, o D. C. Green. E tem a revista que é a bíblia do surfe, que é o Surfers Journal. Mas essa é para um cara mais evoluído, ou mais maduro, ou, melhor dizendo, um velho. A maioria dos moleques não agüenta nem folhear um exemplar. Mas o Surfers Journal é o que há de interessante para se ler. Eu sou assinante do Surfers Journal, da Surfer, da Surfing e, quando sobra dinheiro, durante o ano, eu assino as outras revistas. E tem os sites. Aqui no Brasil, os sites são reprodutores de press releases. Você não vê quase nada que preste num site. Se você pegar uma notícia num dia, que é um press release de alguma marca ou de algum campeonato, e fizer uma busca detalhada, todos os sites, 30 sites, vão ter a mesma notícia, exatamente igual, só vai mudar a chamada de capa. Eles não vão mudar uma letra e não vão conferir se aquela informação é verdadeira e vão vomitar aquela notícia do jeito que veio pra eles. Isso é o que está ditando o ritmo no jornalismo atual, que é pautado por press releases. E os editores se acham grandes autoridades por estarem escolhendo quais serão publicados ou não, sem interferir e conferir a veracidade do fato. O Waves é uma prova disso e volta e meia publica fotos do Jeff Crawford dizendo que é o Jack Dunn, ou vice e versa; ou dizendo que o Shaun Tomson primava pelo estilo. O tipo de coisa que é de gente que não tem a menor intimidade com o assunto falado. Shaun Tomson pegava muito tubo, mas nunca teve um estilo bonito. Ele era sacaneado na época por ter um estilo horroroso. O Jeff Crawford e o Jack Dunn eram dois goofies que pegavam onda em Pipeline, que decoravam com pôsteres as paredes dos quartos, nos anos 70 e 80. Qualquer imbecil sabe disso, menos os imbecis que tomam conta dos sites ou das revistas hoje em dia. Quando não sai a notícia de que o Mineirinho foi pego por uma água-viva na Austrália. Grande notícia!
Qual é o ideal de uma revista de surfe?
O ideal de uma revista de surfe é uma revista honesta, feita com honestidade, sinceridade, coisa que a gente não vê aqui. O grande problema é você se enganar, achando que está fazendo uma coisa do fundo do coração. Aqui os caras fazem do fundo do bolso, defendendo mil interesses, mas não é do fundo do coração. No nosso mundinho paulista e coorporativo não percebemos pessoas com o perfil do João Valente (editor da Surf Portugal), por exemplo. Tudo parece estar uma maravilha, sem problemas. Só estamos esperando o momento certo para termos a consagração de um campeão mundial brasileiro. Aqui tudo é ótimo.
Então, a imprensa especializada em surfe, na sua opinião, deveria ser feita para o surfista e não para aqueles que são apenas simpatizantes do surfe, que usam roupas de surfe, mas que nunca irão surfar, nem muito menos acordar de madrugada para pegar onda?
Tem gente que pega onda uma vez por ano, que é muito mais surfista do que aquele que pega onda todos os dias. Isso não importa. O que importa é fazer alguma coisa que não seja só para ganhar dinheiro, algo que tenha outros interesses na história e que não seja só para fazer mercado. O que é o mercado? São esses mesmos caras que dizem que é um absurdo uma marca do interior de São Paulo ou do Rio Grande do Sul investir em atores de televisão e não investirem na revista. É lógico que eles estão falando da revista deles.
Qual é o papel do editor de uma revista dessas?
A maioria dos editores não tem consciência de que o papel que eles exercem na vida prática de cada um dos caras que estão lendo aquela revista, a influência, é enorme. Eles têm que saber filtrar a informação que estão passando. Têm que ter um poder de análise enorme para poderem examinar as coisas que estão acontecendo naquele momento, como colocações em campeonatos, viagens, equipamentos, filmes... Se não conseguirem entender, devem dividir com os leitores suas dúvidas e certezas. E eu não vejo aqui, no Brasil, nenhum cara que exerça o papel de editor com essa consciência. Acho que todos estão muito preocupados em dividir impressões que não têm relevância alguma com o nosso cenário, com a nossa realidade. O que quer dizer o cara falar da festa da Fluir? O que isso tem de relevante para a cultura do surfe brasileiro? Legal, já tem 10 anos, tinham altas gostosas, os caras continuam ganhando carros, maneiro, mas e aí? O Pigmeu quase chegou ali nos 44 e teve um desempenho fenomenal no inverno havaiano! O Neco está deixando de ser maroleiro de novo; sei lá, o Mineirinho... Vamos falar de coisas que nos interessam. Vamos falar do filme do Mellin, que ninguém deu muita importância. Você pega o “Fábio Fabuloso”, que é o filme que me interessa. A Hard Core ignorou o Fábio Fabuloso. Se depender da Hard Core, da Alma Surf, o Brasil não teve um filme chamado Fábio Fabuloso no ano passado! Porque a notícia estava vinculada a um site, a uma revista. Então, eles ignoram isso, não têm noção do que é ou não importante para o surfe. Eles acham que o importante para o surfe é o que é importante para eles, para os interesses da empresa em que trabalham. E não é assim, os caras não podem ter esse critério para avaliar. Eles devem ter distanciamento.
O certo seria separar o que é notícia, do que é publicidade, do que é opinião...
Lógico! Se a Hang Loose não está anunciando na revista, eles não botam fotos de atleta, não falam do filme e não fazem resenha do que a equipe está fazendo. O outro lado da moeda é dar muita atenção para coisas que não têm o menor interesse para o público, como mostrar surfistas medíocres, viagens que já foram exaustivamente exploradas...
Por que a falta de opinião na imprensa especializada?
Covardia. Medo do confronto. O cara não vai dizer que o Peterson surfa de fundo porque ele tem medo de ganhar uma porrada. Agora, imagina se no futebol fosse assim? Imagina se não tivessem os caras cobrando o tempo todo, diariamente, que o Ronaldo está gordo, que não faz gol, que já acabou o tempo dele etc.? Em relação ao surfe, aqui no Brasil, simplesmente não tem essa cobrança. Só aparece foto na revista e texto falando bem dos caras. Exceto, é lógico, do Vitinho, que por ser pequeno, calado e tímido é sempre o alvo predileto desses covardes, que atacam ele quase sempre sem fundamento. Mas eles são incapazes de atacar o Renan, por exemplo, que tem graduação em artes marciais e o pessoal tem medo. Agora, o Vitinho e o Marcelo Nunes, pode atacar, assim como outros que não oferecem perigo físico.
Ao longo da minha trajetória de trabalho com o surfe, escutei de forma recorrente uma crítica que fala contra os ‘vampiros’ que se aproveitam da imagem do surfe; que querem faturar com a imagem do esporte, copiando as roupas, vendendo mercadoria sem qualidade, com preço baixo, sem patrocinar um atleta ou apoiar um campeonato. Você acha essa crítica pertinente? O problema é esse?
Não, isso sempre teve. O surfe tem um dado muito sério, de fidelidade. O surfista é muito fiel às marcas. É muito difícil, é exceção da regra, o surfista que busca a marca alternativa e inferior, que não tem identidade com o esporte. O surfista, 95% das vezes, é partidário da empresa que investe no surfe porque ele acaba se identificando com o cara que é patrocinado pela marca, num filme, num anúncio. Pra mim, o grande vampiro que existe hoje no Brasil chama-se Osklen. Eles usam a imagem do surfista aventureiro, não investem nada no surfe, vendem bermudas por uma fortuna e posam de grandes espíritos bem feitores da comunidade em geral, de ecológicos e tudo mais. E o pior é que eles estão contagiando as marcas que, por tradição, são envolvidas com o surfe. A Redley, por exemplo, que, no começo, inspirou a Osklen, hoje tenta copiá-la. É o cachorro tentando morder o próprio rabo. E hoje você tem a Redley querendo se distanciar do surfe, tentando manter uma distância saudável, com a Osklen dentro, investindo em pontos de venda, shorts e camisas caríssimas. E o surfe que se dane!
Você acha que surfe profissional, imprensa especializada e a moda relacionada ao surfe se desenvolvem de forma separada, individualmente, ou será que existe alguma ligação entre esses fatores? Você acha importante que o surfe profissional brasileiro tenha uma imprensa especializada bem desenvolvida, mais preocupada com o que o surfista vive, pensa e gosta de ver numa publicação?
Acho que se o surfe tivesse uma imprensa mais crítica e rigorosa talvez atraísse pessoas mais maduras. Porque o moleque, durante dois, três anos se envolve com o negócio, mas depois sai fora, o interesse dele se perde. Enquanto num cara de 25 anos pra cima, o interesse só vai aumentando com o tempo. Tem cara com 45 anos de idade que fica esperando a Fluir sair todo mês, assim como a Surfing e a Surfer. Eles têm poder aquisitivo e têm o interesse. Se eles pudessem acompanhar as competições, ou o que quer que seja, com um nível intelectual melhor, talvez aí sim a gente conseguisse transpor a barreira do praticante/simpatizante. Um cara interessado no surfe ia ler um bom texto e falar, “Pô, esses caras são foda. Comem altas mulheres, viajam o mundo inteiro, ficam só curtindo e ainda têm uns filhos da puta que escrevem bem”. Mas não é isso. Somos os caras que comemos todas as mulheres, que viajamos o ano inteiro, que vivemos na praia, mas que somos uns imbecis. E a imprensa eterniza essa imagem. Volta e meia aparece um cara de fora do nosso meio, como o Arthur Dapieve, que diz que, sim, que nós somos interessantes. Aí todo mundo comemora, solta fogos, diz “pô, que bom, não somos tão imbecis quanto pensávamos”. Foda-se! O movimento tem que sair de dentro pra fora e nunca de fora pra dentro. De dentro pra fora só estão eternizando a imagem do imbecil, com esses personagens de novela, essas matérias que aparecem no Globo Esporte toda semana, de galã de novela e de gostosinha que estão aprendendo a pegar onda, dizendo que o surfe é a sua última paixão. Mas não espere ver nenhum deles dentro d’água, lógico.
Outro dia li um texto do Gerson Filho (ricosurf.com), falando da falta de uma mídia impressa carioca especializada em surfe. Você concorda?
Acho que enquanto a imprensa especializada estiver toda em São Paulo vai ser muito difícil existir uma imprensa de surfe autêntica. Porque São Paulo não é uma cidade surfe, é uma cidade comercial. Vamos citar o Adrian Kojin (editor-chefe da Fluir). O Adrian é um surfista de verdade, que dedicou sua vida inteira para o surfe. Só que ele teve uma boa oportunidade de se tornar o editor da Fluir. Ele está lá pra trabalhar. O cara morava em Maresias, fazia um jornalzinho, era surfista 24 horas por dia - e continua sendo - só que ele está em São Paulo pra trabalhar, porque lá se trabalha. Se ele estivesse aqui no Rio, fazendo uma revista, e pudesse, na hora do almoço, dar uma caída, ou se pudesse antes do trabalho dar uma passada na praia, escutar as merdas que os caras falam ali no calçadão, no Arpoador, a revista seria mais autêntica. O que falta é autenticidade para as revistas. Essa distância deles é um problema sério. Os caras de lá são muito arrogantes em relação à informação. Falta o pé sujo de areia na redação, sabe? Uma redação de revista de surfe tem que ter areia no chão, não dá pra ser limpinha. Tem que ter a sandália, não dá para o cara chegar de calça comprida, camisa pra dentro da calça pra trabalhar numa redação de surfe. É contra tudo o que eles deveriam pregar. Mas, no entanto, eles têm um certo orgulho de fazer isso, não sei por que. Talvez pra mostrar que tudo que eles fazem lá é bem sucedido, que o carioca é um merda, que o máximo que se consegue fazer aqui é ir à praia.
{Julio – jornalista}
Você se graduou em jornalismo?
Não, nunca fiz curso nenhum. Quem me formou jornalista foi o livro ‘A Regra do Jogo’, do Cláudio Abramo, que há alguns anos atrás era um livro fundamental para o curso de jornalismo. Esses manuais de redação que aparecem por aí são uma bosta. A padronização do texto é uma coisa terrível.
Quem é o público alvo dos seus textos? {Julio escreve regularmente sobre o surfe no blog ‘Goiabada’: www.julioadler.blogspot.com}
Falo exclusivamente com quem pega onda. Se um cara que não pega onda gosta de um texto meu, ótimo, fico lisonjeado. Mas não é para ele que faço. Escrevo meu texto como o Rubem Braga fazia os textos dele, eu escrevo para os meus amigos, pra meia dúzia de amigos. Mostro pra eles e pergunto se gostaram. Gostaram? Então está ótimo. Acontece que alguns textos são interessantes pra mais amigos e acabam extrapolando esse número. No meu blog eu tinha 32 visitas diárias e agora eu tenho 46. Acredito que sejam meus 46 amigos, que vão lá todo dia, diferente dos cinco mil que eu tinha no Waves. Mas eu prefiro falar com esses 46 do que com aqueles cinco mil.
Quem interage com você no Goiabada?
Ninguém que seja importante a ponto de ser reconhecido. São alguns poucos amigos e uns caras que eu não conheço, que volta e meia mandam umas mensagens, aquele pessoal que é ignorado pela grande pequena imprensa especializada. Aquele que não tem a quem recorrer. Às vezes ele lê uma informação num texto meu e concorda, realiza que também já tinha pensado sobre aquilo. Ou lê uma informação errada e me corrige, falando que aquela bateria não terminou assim, que aquele cara estava usando outra camisa de competição. Esse é o tipo de cara que interage com meu texto.
Por que a opção de fazer um blog?
Porque eu ganhava 300 pratas no Waves. Não tinha compromisso com periodicidade, mas eu me dedicava sempre um pouquinho e me preocupava em manter coisas inéditas na minha coluna. Num belo dia, resolvi pedir um aumento, que achava muito justo, e esse aumento me foi negado. Eu tinha tanta coisa que gostaria de dizer, que não estava mais vendo lugar para publicar, tanta coisa que eu já tinha publicado, que gostaria de ver republicado, talvez com comentários atuais... Vi um site chamado ‘Ondas’, português, e resolvi imitar os caras, botar trecho de música, poesia, meus textos, textos de outras pessoas, links para outros textos. E comecei a fazer o Blog que, como tudo que faço, é um fracasso, mas continua lá, firme e forte.
Você tem uma coluna na revista Surf Portugal. Como se deu esse envolvimento?
Me orgulho muito de colaborar com a Surf Portugal, que considero a revista mais bem escrita no nosso idioma. Mantenho uma coluna lá desde 1996, que se chama “Tempestade em copo d’água”. Não poderia estar em melhor companhia porque o cara que mais admiro no mundo das letras surfísticas é o Gonçalo Cadilhe - e lógico, o Pepê, meu irmão, que volta e meia tem seus poemas publicados na Surf Portugal, desde que aqui no Brasil ele é solenemente ignorado. A Surf Portugal dá uma matéria de capa, com oito páginas só com os poemas dele e, aqui, no máximo, fazem um “5 minutos”, pra dizer que ele está lançando um livro, como se fosse um favor. Mas dá para entender porque, pelo nível intelectual que os caras que trabalham com a imprensa do surf no Brasil têm, é difícil mesmo deles alcançarem. Acham melhor seguir com o lema deles, “poesia é coisa de veado”. Sou muito amigo do editor da Surf Portugal, o João Valente. Ele é um cara que pensa em português que faltava aqui no Brasil para que o surfe fosse levado um pouco mais a sério. Se a gente tivesse um cara como ele aqui para conduzir o surfe na imprensa especializada, acho que o esporte seria bem maior do que é. O João é muito articulado. É extremamente inteligente e bem informado. Então, se aparece algum cara afetadinho para conversar com ele, provavelmente essa pessoa não iria conseguir manter o nível durante muito tempo. O João é bem mais inteligente e articulado do que a maioria que gosta de fazer o surfista parecer menor. Eventualmente, quando a grande imprensa tivesse interesse pelo surfe e fosse procurar o representante do surfe na imprensa especializada, iria encontrar um cara como o João Valente e iria pensar que tinha que prestar mais atenção no surfe porque o João pensa o surfe de uma maneira muito diferente. Tanto é que a Surf Portugal, em Portugal, é muito mais consistente do que as revistas de surfe brasileiras são no mercado editorial brasileiro. A Surf Portugal tem mais de 10 anos, tem uma tiragem pequena e uma fidelidade enorme, em todas as camadas sociais. É uma revista direcionada para surfistas. Meu envolvimento na Surf Portugal se deve em grande parte à minha amizade com o João Valente. Uma amizade que surgiu como tudo que surge no surfe, pegando onda, passando uma roubada aqui, outra ali. Conheci ele em 93, na Califórnia. Fui seguir a música do Menino do Rio, fui viver a vida sobre as ondas. Corri um monte de campeonatos do circuito Bud Tour. O João foi com os portugueses competir no U. S. Open. Tive um breve contato com ele e depois desse ano fui para Portugal onde tive outro contato e a amizade foi ficando. Em 96, voltei a Portugal e me ofereci para escrever uma coluna. Nessa oportunidade, o Occy tava tentando voltar para o circuito mundial e escrevi uma coluna que falava das lágrimas de um touro, pois o Occy tinha feito uma interferência e estava quase chegando à vaga dos 44, numa bateria contra o Chris Ward, de manhã cedinho, lá na Ericeira. Viu a vaga fugir por entre os dedos e chorou. Aquilo foi duro pra mim. Logo em seguida, dois campeonatos depois, ele pegou muito num mar grande, numa bateria, que tem no vídeo “Cambito III”, eu estava lá, gravando com o Pepê. Não parei mais de escrever na revista. O João nasceu em Portugal, mas morou no Rio de Janeiro por muitos anos, é flamenguista, tem os mesmos gostos do que eu para a música, teve uma boa educação, estudou em bons colégios, lê muito, tem o interesse de ir fundo nas coisas que gosta, compra todos os discos ou livros de determinado autor ou banda. Nós temos uma grande identidade. A origem disso é berço. O irmão dele é hippie, morou numa casa em Santa Teresa, com os Novos Baianos. Sei lá.
{Julio Adler – influências}
Você me falou que sempre gostou de ler. Percebo que você está sempre colocando um tempero nos seus textos, algo que tem a ver com o cotidiano, com a cultura do Rio de Janeiro. Hoje (28/03/05), você publicou um texto falando que o Kelly Slater é tão diabólico quanto a Maria Bethânia. Como assim?!
Outro dia, no Segundo Caderno de O Globo, apareceu a Fernanda Montenegro indo cumprimentar a Bethânia, depois de um show. Ela chamou a Bethânia de diabólica. Eu achei isso do cacete, está aí uma boa definição. É um diabólico para o bem, é maquiavélico, um negócio tão bem feito que chega a criar um mal estar. O Slater tem essa parada de ser diabólico. Ele não está querendo foder com ninguém, mas ele pensa determinadas coisas que ninguém pensa. Quando você para e realiza o que ele está bolando, você fica impressionado. Mas esse negócio de citar texto eu gosto porque sempre o meu modelo de colunista, quem eu gostaria de ser, se tivesse bagagem suficiente, seria alguém como o Paulo Francis. Ele indicava tanta coisa boa pra gente ler no meio dos textos. Às vezes ele estava sacaneando um cara e indicava uma coisa bacana para você ler. E você procurava aquele livrinho, lia e descobria que era dali que ele tirava aquelas frases que usava de vez em quando. Então, eu sempre procuro empurrar alguma coisa junto com os meus textos.
De onde vem o hábito da leitura?
Meu avô tem uma biblioteca gigantesca. O nome dele é Haity Moussatche, era cientista, já faleceu e foi um dos cientistas caçados pelo governo militar. No final da década de 60, foi obrigado a sair do Brasil pelas opiniões que tinha, foi obrigado a esconder um bocado de livro já que seus escritores prediletos eram soviéticos, como Thecov, Dostoievsky, entre outros, uma turma lá do outro lado da cortina de ferro. Ele sempre teve o hábito de ler muito e me incentivou, mesmo de longe, a ler. Minha mãe também sempre leu e estudou muito, e meu pai, por outro lado, se não lia com qualidade, lia com quantidade, pois lia todos os best sellers, lia seis, sete livros ao mesmo tempo. Fui despertar meu interesse pela leitura ainda no colégio, com a série ‘Para Gostar de Ler’, que trazia Drummond, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Veríssimo, Cony, só turma boa. E sempre li muitos quadrinhos. Sou um comprador compulsivo, compro livro toda semana, mesmo que não seja pra ler, compro pra ter. Nem que seja para descanso de copo, peso de papel, eu gosto muito de livro.
E você faz uma interação dessa bagagem de leitura com os textos sobre o surfe...
Cada um na sua, né? O cara que faz alpinismo vai encontrar metáforas em tudo que ele faz com o alpinismo. O cara que joga bola vai encontrar no mundo empresarial e no campo de futebol. E eu com o surfe estou sempre descobrindo que determinada situação que passei na rua ou que li num livro é muito igual ao surfe. Isso acontece em qualquer lugar, como com o cara que trabalha na bolsa de valores, que compara o livro do Sun Tzu, ‘A Arte da Guerra’, e acha que a história escrita há algumas centenas de anos atrás é quase que específica para o mercado da bolsa. E eu também adapto a Arte da Guerra para o surfe.
Qual é a sua opinião sobre grandes empresas de automóveis, sucos, pastas de dente etc. estarem fazendo uso da imagem do surfe para venderem seus produtos?
Eu só acho uma pena que os caras que dedicaram uma vida inteira pegando onda, como os surfistas profissionais, não ganhem um centavo com isso. O surfe está ganhando muito espaço, mas o Mandinho continua sem patrocínio, o Vitinho continua mendigando para poder correr uma etapa do Circuito Mundial e isso é uma pena. Mas não penso em grandes conspirações por causa disso não.
{WCT – brasileiros}
Você é do tipo que torce pelos brasileiros que estão no WCT, acompanha, está atento à atuação deles?
Eu sou torcedor de arquibancada legal. Mas, para o Vitinho e o Neco eu torço muito mais do que para os outros. Por proximidade e afinidade. Também por admiração pessoal e pelo jeito que eles pegam onda. Eu gostaria, como brasileiro, de me ver representado pelo surfe de um Pigmeu, um Trekinho e um Raoni. Não me sinto tão bem representado por outros, que, no entanto, estão lá. Gostaria de me ver representado pelos caras que gosto de ver pegando onda. Mas isso é complicado porque às vezes eu torço tanto para o Herdy e para o Peterson quanto torço para o Vitinho. Mas dói muito mais ver o Vitinho perder do que qualquer outro cara. Por ter acompanhado ele desde o início, por ter visto tudo que aconteceu com o cara e tal. Pelo caráter do sujeito, pelas dificuldades que ele enfrentou e principalmente pelo jeito que ele pega onda, que é o motivo disso tudo. Se o cara não pega onda direito é melhor que saia logo. Então, é lógico que o brasileiro quer se ver bem representado. Você não quer ver um cara grosso jogando na seleção brasileira. Quer ver um cara genial, que tem um toque refinado na bola, um cara que tem um trato especial com ela, que saiba driblar, que tenha velocidade. Não quer ver um brucutu no meio de campo, dando bico pra frente como o Emerson. Eu não me sinto representado pelo Emerson, nem pelo Lúcio, nem pelo Edmilson. O ideal que temos de seleção brasileira é Ronaldinho Gaúcho, Robinho, era o Romário. Tu quer que o cara quando te encontre na China remeta o Brasil a Romário, Robinho, Ronaldo. Mesma coisa no mundo do surfe, a pessoa lembrar do Brasil de Fábio Gouveia e não daquele que pega com a base feia.
{WCT 2005 – perspectivas}
Como você vê as perspectivas para o Brasil no WCT 2005?
Competição é outra parada. Acho que falta uma concentração extra pra gente. Sei lá. O Neco, às vezes, parece muito determinado, mas perde o foco rápido, no meio de uma competição. Tem uma molecada nova boa para entrar no WCT e fazer número. Não vejo ninguém com condição de fazer grandes estragos. Com o tempo, esses caras, que podem entrar pra fazer número, podem virar um Andy Irons, que entrou pra fazer número, saiu, e quando voltou ninguém dizia que ele seria campeão mundial. Nunca vi ninguém dizer que ele seria campeão. O campeão mundial sempre foi o irmão dele. O Andy Irons sempre foi corajoso, mas mediano. E, de repente, se tornou a máquina competitiva que é. Acho que é um click que dá. A qualquer momento um Pedro Henrique da vida pode se tornar um animal competitivo, mas, por enquanto, não vejo. Em matéria de desempenho, aquela turma lá do Mick Fanning, Joel Parkinson, Chris Ward e Slater estão muito à frente de todo mundo. O que não quer dizer que eles não possam ser batidos num campeonato.
O Raoni tem chamado alguma atenção...
Ele é um surfista de talento bruto. Tem que ver o quanto ele está interessado em se tornar um surfista excepcional; e por quanto tempo ele deseja ser um surfista excepcional; ou se ele acha que o que ele sabe hoje já é o suficiente para se manter no topo e quando acabar está bom. Isso acontece muito no Brasil. Primeiro, eles não têm autocrítica. Uma vez, num WCT, estava junto com um cara, que prefiro não dizer o nome, e vimos o Occhilupo pegar uma onda, que foi a melhor onda em que vi alguém surfar na minha vida, algo totalmente improvável para qualquer surfista vivo no planeta. Aí, esse cara que tava do meu lado falou, “Porra brother, a gente pode dar uma dura no cara, tamo treinando, arrepiando de back side...”. Cara(!), se você estivesse ao lado do Slater, vendo aquela bateria, ele (o Slater) iria falar que ninguém no mundo pegaria aquela onda igual ao Occhilupo. Aí vem um merda e fala que pode ‘dar uma dura’. Esse pensamento é ridículo e é o que predomina aqui no Brasil. O cara nem sabe por que pensa assim. Não sabe analisar o posicionamento do braço, dos pés, das pernas, o equipamento... O cara acha que é só eternizar o lugar dele ali no WCT através do WQS e pronto. Não é bem assim, tem que ir mais longe, buscar mais fundo, passar mais horas dentro d’água, tentar mais, testar mais. E não sei se o Raoni e as pessoas que estão em volta dele têm essa consciência. Temo que não. Vejo, por exemplo, que o Mineirinho está viajando um bocado, mas o cara que agencia ele não tem noção de surfe e não pode ajudar o Mineirinho em nada. Totalmente o contrário do Slater, quando mais novo, que tinha o Derek Hynd, o Paul Sargent, gente que entende de verdade do esporte, que sabe que aquele cara, que já está surfando muito, pode surfar muito mais. Acho um perigo o que estão fazendo com esse moleque. Mas vamos ver o que vai acontecer. Tenho medo que ele sirva de alicerce para outros interesses. Já vi acontecer isso antes. Gente aproveitando a ascensão do surfista pra ganhar mais um dinheiro, para falar na televisão, para comemorar o título na areia. Esse não é o papel do cara que está de fora.
{Bruno Santos – Pipeline – Havaí 2004}
O que você achou da atuação do Bruno Santos, na triagem para o Pipeline Masters 2004? Qual é o significado do vice-campeonato do Bruninho, nessa triagem, para a história do surfe brasileiro?
Aquilo ali foi um absurdo e foi ótimo que tenha vindo com o Bruno Santos. Eu não dava muita atenção pra esse moleque. Quem me chamou a atenção para ele foi o Rafael Mellin. Sempre achei ele muito contido, uma versão modernizada do João Gutemberg, com papai na praia e etc. Mas sempre me surpreendeu o apetite que ele tem por onda grande e a colocação de tubo dele. Essa parada dele em Pipeline... Foi aquele momento especial que tem na história de um país. O Bruninho ter conseguido varar a triagem de Pipe, no meio de um monte de convidados, num mar na condição que tava, colocou o Brasil de volta – junto, é lógico, com a atuação absurda do Pigmeu em Pipe, Sunset e Haleiwa – ao papel de desafiante no Havaí, coisa que ao Brasil já estava renegada. Pois era sempre a mesma história do brasileiro ser muito bom em beach break, mas quando chega ao Havaí ninguém se destaca. E agora teve o Bruno Santos e o Pigmeu que se destacaram de verdade. Não é uma nota 10 isolada no Pipe Masters, como foi a do Renan, em um campeonato, em uma onda. Foi uma temporada inteira e não foram apenas eles, teve o Stephan Figueiredo, o Simão Romão, o Trekinho e uma turma que está com muita vontade de ser reconhecida. Porque a geração que está passando agora não agüenta ficar no Havaí, pois é muita pressão. Se o cara quer correr o WCT e quer ser campão mundial, ele tem que se submeter ao Havaí. O Havaí é escroto, tem porrada, cara feia, saudade, é caro, é tudo de ruim. Mas você tem que estabelecer determinadas prioridades na sua vida. Se você quer ser surfista profissional, vai ter que enfrentar isso tudo. Esses moleques estão fazendo isso e estão fazendo muito bem. E o Bruninho, se bobear, é quem está liderando esse movimento desde o início, junto com o Pigmeu.
Você tem alguma frustração em relação ao surfe?
Eu queria pegar melhor onda grande. Queria pegar onda grande igual ao Bruninho.
Tem algum desejo que pretende realizar ou ver realizado em termos de surfe?
Queria ver um brasileiro pegando pra caralho em Pipeline, ganhando um campeonato de cima a baixo em Pipeline, pegando muito; e, no ano seguinte, ganhando um campeonato na Gold Coast australiana. Se não for campeão mundial, foda-se, não faz a menor diferença, é só para provar que somos versáteis e podemos pegar muito em duas condições totalmente adversas. Meu sonho pessoal é só poder um dia voltar para Jeffrey’s Bay.
Você está na ativa no surfe, pegando onda constantemente? Quais são suas pranchas?
Direto não, mas... Faço pranchas com meu amigo de infância que é o Alemão, o Claudio Walter, das pranchas Hennek. Peço pra ele reproduzir as minhas pranchas boas. Gosto de round pin, com canaleta, só isso. Tenho 5’10”, 5’11”, 6’, sou maroleiro, não tenho prancha grande. Gosto de onda buraco, raramente vou à Prainha, por exemplo. Se tiver dois metros na Prainha, prefiro pegar um metro e meio em Ipanema. Gosto de onda perto da beira, curta, intensa. Não gosto de onda muito ladeirão, cheio de gente com prancha grande, acho meio ridículo. Eu gosto muito de Itacoatiara, mas tinha que ter um informante para me dizer que vai dar. Já tirei um terceiro lá, numa etapa do carioca profissional, num mar enorme, em 1992. Foi uma etapa em que o Zé Roberto Aníbal ganhou.
Que livros e vídeos você indica para os interessados em surfe?
Em vídeos, clássicos e contemporâneos, o “Blue Horizon”, do Jack McCoy; “The September Sessions”, do Jack Johnson; o “Litmus”, do Andrew Kidman; e o “Second Thoughts”, do Timmy Turner, também um clássico instantâneo do surfe. Dos mais antigos, dos anos 80, o “Blazing Boards” e o “Beyond Blazing Boards”, do Chris Bryston; e “Surfing into the Summer”, da Billabong. Dos anos 70, “Free Ride” e “Five Summer Stories”; “Morning Of The Earth”; “Tubular Swells”; são muitos. Dos anos 60, a coleção do Bruce Brown, que tem no Brasil, em DVD, por trinta pratas, na internet. Vejam “Trocando as Bordas”; “Fábio Fabuloso”; “Sambatrance”. De livro, tem os livros do Ruy Castro, que falam sobre a Bossa Nova, onde têm um bocado de coisa sobre o surfe, interessante para os que querem conhecer um pouco da cultura de praia brasileira, que foi onde tudo começou. Não foi em Santos! O livro sobre o Jeff Hakman, “Mr. Sunset – The Jeff Hakman Story”, é legal. O livro do Rabbit (biografia – Busting Down The Door) e do Michael Peterson (MP: The Life of Michael Peterson) são muito bons também. E, se o cara tiver interesse mesmo em saber sobre história do surfe, assine o “The Surfers Journal”. É um pouco caro, mas vale à pena, é leitura para o ano inteiro.
Algo a dizer sobre o atual estágio do surfe no Rio de Janeiro?
O surfe no Rio foi um bocadinho enterrado junto com Roberto Valério.
FIM
Sites relacionados à entrevista:
fluir.com.br
waves.com.br
transworldsurf.com
surfermag.com
surfingthemag.com
surfinglife.net
tracksmag.com
surfersjournal.com
Alguns dos títulos citados na entrevista podem ser encontrados nos seguintes sites:
orcasurf.co.uk
harpercollins.com.au
surfline.com – seção: Tapping the Sources
2 comentários:
Como sempre, gostaria de parabenizar o Julio Adler por seus textos e comentários, totalmente independente quanto às críticas, em relação aos veículos de mídia especializada em surf no Brasil, continue assim, não alivie ninguém.
Quanto ao ano em que voçê foi coroado campeão carioca profissional, no qual ganhou de seu próprio patrocinador na final, é inacreditável que o mesmo tenha ficado no recalque e, posteriormente tenha lhe dado um pé na bunda, só no Brasil mesmo.
não tinha lido ainda não...parabéns..show a entrevista....abraço
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